Neste espaço vamos compartilhar com o leitor nossas impressões sobre livros lidos e eventos assistidos.
Aqui pretendemos pontuar algumas passagens que nos pareceram marcantes dessas experiências, bem como ideias e sentimentos que delas nos ocorreram.
Através do registro a que nos propomos buscamos alcançar pelo menos três objetivos.
O primeiro é nos forçar a fazer uma espécie de diário que nos ajude a perenizar aspectos dignos de nota de manifestações literárias, cinematográficas ou acadêmicas/científicas.
O segundo é trazer alguma leveza para o site, abordando assuntos normalmente menos aborrecidos do que o teor dos graves temas que são objeto de reflexão nas outras frentes que compõem o presente projeto.
Já o terceiro é estimular o debate e senso crítico sobre os tópicos tratados, o que acaba servindo de convite para que eles sejam objeto de investigações mais detidas no futuro.
P.S. Para alegria do público, as resenhas não se limitarão a obras de “natureza jurídica”. Tanto assim, que começaremos por literatura (20.04.20).
RESENHA – LIVRO – LA BÊTE HUMAINE
Livro: La Bête Humaine (A Besta Humana ou a Humana Besta, em tradução livre)
Autor: Émile Zola
Editora: Galimard
Data da edição que lemos: 2001
Data em que a obra apareceu: 1890
Lemos a obra na virada do ano de 2018 para 2019.
Tendo ela nos chamado atenção pelo autor, com o qual tivemos contato nas lições de francês[i], demos início a sua leitura.
Não me lembro de ter lido outro livro em que uma cena prendeu tanta minha atenção como a do momento em que Roubaud discute com Séverine suspeitando de traição.
A plasticidade empreendida pelo autor no desenho das personagens e do cenário é formidável.
O ritmo da narrativa, que começa suave e por um detalhe ganha corpo, deixa o leitor em suspense: houve a traição?
Após, confirmada a suspeita, o diálogo ríspido entre os cônjuges entra em uma espiral rumo à apoteose: o marido traído conseguirá se conter ou matará a mulher infiel ali mesmo, no limiar do romance?
Só por essa passagem La Bête Humaine já valeria a leitura.
Mas a obra vai muito além.
Ler maisLantier tem a ideia fixa de matar alguém, um desejo incontrolável e sem explicação aparente, que o acompanha em sua vida operária bem resolvida, que tinha tudo para ter um curso natural de razoável conforto e sem grandes perturbações se não fosse essa fissura de caráter, que passa a suportar forte pressão a partir do destino dado por Roubaud e Séverine à sua desarmonia familiar (e inexoráveis desdobramentos…).
Para os estudantes e demais preocupados com o Direito o livro ainda traz uma reflexão atemporal sobre os assuntos da Justiça.
Um promotor de justiça orgulhoso e implacável, M. Denizet, responsável pela condução do inquérito criminal que apura o responsável pelo homicídio de uma figura de destaque da sociedade da época, encontra-se em um quadro de incerteza, em que provas circunstanciais podem apontar tanto para um indiciamento que poderia abalar as estruturas de poder, como para desfecho que provavelmente atenderia a interesses de ordem geral.
O integrante da magistratura (na França tanto nossos juízes como nossos promotores fazem parte de uma mesma instituição, com divisões funcionais internas), embora incorruptível, tem suas ambições profissionais, para as quais um atuar em sintonia com os seus superiores pode lhe render bons frutos.
M. Camy-Lamotte, Secretário da Justiça, compartilhou com o promotor seu desejo ardente de ver o crime desvendado, alcançando-se o seu culpado.
Nada obstante, não escondeu a preocupação do Palácio das Tuileries com o barulho desproporcional gerado com o episódio (no qual a vítima da alta sociedade e ela mesma um antigo magistrado teria envolvimento com pedofilia), e recomendou a M. Denizet uma atuação cautelosa no desenvolver de seus trabalhos.
Em que medida a conclusão do promotor sobre o caso será influenciada pelo não dito nesse processo rumoroso?
Esse pequeno excerto, que pode passar um tanto despercebido por boa parte dos leitores à vista da riqueza da trama, a nosso ver serve à meditação sobre a utilidade para a sociedade sobre um sistema de justiça bem estruturado, em que a carreira dos seus integrantes não seja suscetível de movimentações que atendam a critérios eminentemente políticos.
Em tempos turbulentos como os vivenciados pelo país, em que o serviço público segundo algumas narrativas não só é desvalorizado como ainda é apontado como uma das grandes causas do males que vivemos, parece oportuno lembrar a relevância da boa organização das atividades estatais como condição para o seu adequado desenvolvimento, de modo imparcial e objetivo, em prol do cidadão.
São Paulo, 21 de abril de 2020
(quarentena por ocasião do Covid 19)
[i] Se não me engano em ciclo de estudos sobre a cultura francesa, em que há passagem obrigatória sobre o rumoroso Affair Dreyfus, contexto no qual Zola publicou carta aberta ao Presidente da República da época denunciando o complô contra um inocente.
Passagem do texto: https://alexandrecunhafilho.com.br/wp-content/uploads/2020/04/A-Besta-Humana-700×609.jpg
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